20/03/19

Falsos felizes

O último álbum dos Paramore, After Laughter, lançado em 2017, foi, para mim, uma masterpiece em termos de letras e de mensagem que transmite. Para quem não conhece, todo o álbum e qualquer uma das músicas é um desabafo, uma expressão de sentimentos de quem se encontra num estado de depressão, ansiedade, exaustão em relação à vida e ao mundo, e tantas outras coisas semelhantes pelas quais cada um de nós, a certa altura, já passou. O interessante é que, apesar da tristeza das letras, que foram tão bem escritas e que expressam os sentimentos e a mensagem de uma forma tão verdadeira e tão adequada à nossa realidade, a maior parte das faixas vem até nós com uma sonoridade leve e um ritmo animado. É quase como um “disfarce”: uma música com uma aparência alegre e animada, capaz de nos pôr a mexer, mas com um “interior” – uma letra – tão triste.

Engraçado que uma das músicas chama-se Fake Happy e fala precisamente deste assunto, mas, como não podia deixar de ser, em relação às pessoas: o facto de se mostrarem felizes e de darem a entender que se estão a sair bem na vida, quando, na verdade, vivem tristes, vazias, revoltadas, desamparadas e tudo o mais que se possa imaginar. Mas não o demonstram, preferindo viver atrás de uma máscara de felicidade falsa. Acho engraçado porque a própria música é como uma Fake Happy Song. É uma das minhas favoritas do álbum, especialmente por causa da mensagem.

Aliás, o que mais me fez gostar deste álbum foi mesmo a mensagem e as letras, porque, no que toca à música em si, continuo a gostar mais dos antigos Paramore, como muitos outros fãs. No entanto, foi como se este álbum tivesse surgido numa altura de necessidade. Eu estava num período muito mau quando foi lançado e quando o ouvi pela primeira vez, pelo que a minha reacção às letras e a compreensão das mesmas foram imediatas. Creio, até, que se não tivesse estado assim, sentindo-me como no fundo do poço, completamente infeliz, perdida, desamparada e sem encontrar qualquer propósito na vida, nunca teria estimado este álbum desta maneira. Ter-me-ia passado despercebido e não teria gostado dele, por não ter compreendido as letras nem todos os sentimentos que transmitem.

Tal como a música que falei acima nos diz, também eu já fui uma fake happy, e penso que todos nós, a certo ponto, também já o fomos. Existe, até, quem continue a sê-lo. É que era tão mais fácil disfarçar e esconder o que se sentia e o que se passava cá dentro; era tão mais fácil pôr uma máscara e fingir que estava tudo bem. E era ainda mais fácil publicar fotografias aparentemente felizes nas redes sociais. Só para que todos pensassem que estava tudo bem, que eu também estava bem e feliz, tal como todos eles. No entanto, há tanta coisa que uma fotografia não mostra. Há sempre uma história por trás, e, por vezes, uma história tão diferente da imagem que vemos. Podia estar a sorrir numa fotografia, mas estar infeliz e sufocada por dentro. E ninguém o sabia. Como podiam saber?

E pus de uma vez por todas na cabeça que, tal como as minhas fotografias tinham a sua história e eram muito mais do que aquilo que os outros viam, também as fotografias das outras pessoas o deviam ser. Também teria que haver mais do que aquilo que mostravam, pois parecia-me impossível estarem sempre felizes e terem uma vida aparentemente perfeita e sem preocupações durante a maior parte do tempo. É um conceito tão óbvio, mas custou-me tanto a entendê-lo.

Quando comecei a ver as coisas com outros olhos e quando comecei a melhorar, fui começando a deixar, aos poucos, esta questão de me comparar constantemente com os outros e esta espécie de necessidade de dizer e de mostrar que também estava tudo bem comigo. As redes sociais conseguem ser completamente tóxicas neste sentido, mas, agora, já nada disto me afecta. Porque, tal como aconteceu comigo, uma fotografia pode ser muito mais do que aquilo que mostra. Ainda existem muitos fake happy por aí. Mesmo que não o sejam, já não invejo a sua felicidade. Pelo contrário, e isto até não deixa de ser estranho para mim, até me sinto bem e leve com a felicidade dos outros, especialmente das pessoas que conheço e/ou que admiro. Ver pessoas felizes, genuinamente felizes e com vidas felizes, faz-me, agora, pensar que um dia também chegarei lá.

Hoje, sou mais uma genuína feliz do que uma falsa feliz. Agora, nada do que eu publico nas redes sociais surge com o propósito de disfarçar uma dor ou de esconder sofrimento. É tudo verdadeiro e honesto, mas só até certo ponto.

É que também existe a outra face da moeda: a parte do quanto é que devemos mostrar. Eu acho um piadão a quem mostra tudo o que fez num dia, a quem fotografa tudo e filma tudo só para toda a gente ver. Não estou a ser irónica; acho mesmo piada. Especialmente quando se tratam de viagens e é como se eu também estivesse ali ao lado. Não vejo qual seja o propósito e não sei se se trata de exibicionismo, mas também não me incomoda. Seja como for, é algo que não faço. Pelo simples motivo de não ter a mínima pachorra para andar com o telemóvel na mão e por preferir ver as coisas com os meus próprios olhos, mesmo que mais ninguém as vá ver.

Assim, ninguém sabe, por exemplo, quando e onde é que vou jantar fora. Ninguém sabe dos passeios que faço aos fins-de-semana. Ninguém sabe que roupa usei em determinado dia. Ninguém sabe se faço compras. Ninguém sabe se também não faço exercício ou se também não como comidas boas. Ninguém sabe, sequer, o que fiz este fim-de-semana. Ninguém sabe se estou sozinha ou acompanhada. E nem eu faço questão de que o saibam. São coisas que ficam apenas comigo, e não partilhá-las nas redes sociais não significa que não tenha uma vida mais ou menos boa nem mais ou menos interessante. É melhor do que ser uma falsa feliz. Se porventura surge alguma partilha, é genuína. E a (boa) história que existe por trás, bem, essa só eu vou saber.

02/03/19

"A Filha da Floresta" ou O porquê de adorar Juliet Marillier


Já faz algum tempo desde que terminei de ler A Filha da Floresta, o primeiro volume da série Sevenwaters. E a razão de ainda não ter vindo aqui falar sobre o livro ou escrever uma review em condições foi o facto de ter ficado tão entusiasmada e interessada pela série, o que fez com que, para além de me ter deixado sem palavras e sem ideias para escrever uma opinião, me atirasse logo ao segundo volume, O Filho das Sombras, que estou a devorar bem mais rapidamente do que o primeiro.

Na verdade, continuo sem grande inspiração para escrever uma review sobre este livro. Prefiro, aliás, falar sobre o quanto gosto da autora, Juliet Marillier.

Este não foi o primeiro livro que li desta senhora. Já tinha lido uma outra trilogia, Shadowfell, da qual gostei mesmo muito e sobre a qual escrevi no meu antigo blog. Mas já nessa altura ouvia falar de Sevenwaters – que é mais antiga do que a Shadowfell –, e tudo o que lia sobre isso dava-me a entender que era uma série bem melhor do que aquela que tinha acabado de ler.

O facto de já ter lido esta outra trilogia da mesma autora fez com que notasse alguns pontos comuns.

Juliet Marillier é uma contadora de histórias encantadora. Para além da forma como escreve e conta a história que estamos a ler, também é capaz de inventar pequenas histórias dentro da história, histórias de aventuras, de fantasia e romances de contos-de-fadas que se contam ao redor de uma fogueira ou após um jantar. Tem uma imaginação tão grande, e transmite as suas ideias de uma forma tão leve, clara e cativante. Depois, há a forma como descreve a natureza, sejam florestas ou campos, praias ou o vasto oceano. Descreve os lugares de maneira a sentirmo-nos lá. Até os cheiros. O cheiro a papas de aveia, o cheiro de infusões de ervas e tudo o mais parecem ser transportados para a realidade, de tão bem descritos. Fala muito sobre árvores, ervas e flores. Há magia nas suas histórias e criaturas de outro mundo, e esses elementos são normais no mundo em que a história se passa. Em termos de tempo, passam-se numa época antiga, que remete para o medieval. Traz-nos personagens femininas fortes, corajosas, determinadas e lutadoras, que normalmente são curandeiras. O ofício é relatado ao pormenor, bem como os usos e propriedades de mais ervas e flores. Os romances entre as personagens são descritos de uma forma tão subtil e poética; não é necessário o uso de expressões directas para percebermos que há algum sentimento entre personagens, pois isto é simplesmente subentendido, como que lido nas entrelinhas. Até cenas “picantes” são escritas de forma poética. Os livros são escritos na primeira pessoa, mas a ligação que se estabelece com o leitor é tão forte e a linguagem é tudo menos infantil – e não é qualquer escritor que consegue essa proeza.

A Filha da Floresta é baseada num conto dos irmãos Grimm, Os Seis Cisnes. Apesar de não conhecer o conto na altura, tanto isto como a sinopse na contra-capa do livro fizeram-me franzir um pouco o nariz e hesitar em trazê-lo para casa. A verdade é que, embora já tivesse ouvido falar tão bem da trilogia e de estar ansiosa por lê-la, a sinopse reduziu as minhas expectativas. Isto porque referia o cliché da madrasta má dos contos-de-fadas, que lançava uma maldição sobre os irmãos da personagem principal, e esta, depois disto, estava destinada a salvá-los. Pareceu-me tão típico, um simples conto-de-fadas que não acrescentaria nada de novo.

Mas eu devia ter-me lembrado de que é de Juliet Marillier que estamos a falar, e, ao ler as primeiras páginas e ao reconhecer tantos pontos em comum com a minha adorada série Shadowfell, recordei o quanto gostava desta autora e não foi preciso muito para me embrenhar na história. Não é um conto-de-fadas, e não é típico nem cliché. Há tanto que acontece, tanta coisa que muda o rumo da história e que nos leva a perguntar o que se passará a seguir.

Fiquei embrenhada na história logo no início, porque logo aí é-nos apresentada a família de Sevenwaters, os sete filhos – seis rapazes e uma rapariga – de um sétimo filho. São todos tão diferentes, cada um com a sua particularidade, as suas características, os seus gostos e as suas aptidões – que estão tão bem definidos e que a autora faz sempre imensa questão de realçar – e é notável o amor e a união que existem entre os sete. Por acaso gostava que a questão da “madrasta má” e a sua presença no seio da família tivessem sido mais desenvolvidas. A partir de certo ponto, quando são dadas as condições para que os irmãos da protagonista se libertem da maldição, achei que a leitura fosse tornar-se aborrecida, mas não. O simples dia-a-dia da personagem principal é bom e encantador de se ler, e a constante mudança de ambiente e até a mudança das estações do ano foi algo refrescante. Houve uma cena que me chocou um pouco, uma cena marcante quase a meio do livro e que altera o rumo dos acontecimentos. Não foi chocante propriamente pelo seu conteúdo, mas pela linguagem utilizada – que foi muito bem empregue e a cena foi muito bem descrita; talvez por isso se tenha tornado mais chocante ainda. E não gostei do final, pois não estava à espera que acabasse daquela maneira. Aliás, esperava que algumas das coisas acontecessem, mas não outras. Portanto, não é um conto-de-fadas.

Mas talvez seja devido a esse final que ficamos com a curiosidade aguçada para o próximo volume da série. Foi o que me aconteceu. E até este segundo livro, para além de um pouco diferente, está a ser ainda mais interessante.