Tomar as minhas próprias decisões

Fora do campo artístico, neste ano atípico passei a maior parte do tempo em casa, continuei no meu regime de prestação de serviços – serviços esses que só surgem de vez em quando –, não encontrei um emprego a tempo inteiro nem um trabalho temporário, e não comecei o meu negócio próprio, que tinha planeado iniciar este ano. Quem vê de fora, especialmente quem mal me conhece ou que nem sabe do meu projecto artístico, dirá que não fiz nada durante um ano inteiro, que não contribuí para nada. No entanto, eu sei que fiz algo. Fiz muitas coisas, aliás. Mas quero falar sobre algo particularmente importante: o trabalho interior, o olhar para dentro e perceber, finalmente, o que realmente quero e o que faz sentido para mim e aquilo que não quero para a vida. O tomar as minhas próprias decisões, independentemente da opinião alheia. 

Foi algo que a minha psicóloga me falou, que me deixou feliz e me fez reflectir. No final da nossa última consulta, disse-me o quanto estava orgulhosa. Em primeiro lugar, por ter tido a coragem de deixar o meu emprego em 2018, que não me fazia feliz, que me deixava esgotada e esmorecida. Depois, pelo quanto tinha evoluído e mudado desde o início das nossas sessões. Que eu tinha um novo brilho, que parecia mais leve. Que eu estava de parabéns por toda a mudança e porque estava, finalmente, a tomar as minhas próprias decisões e a fazer o que acho ser certo. Saí do consultório tão animada e estranhamente leve e feliz. 

Quando olho para trás, sei que fiz bem em ter deixado o tal emprego. Se não o tivesse feito, tudo teria ficado na mesma. Eu teria ficado na mesma, esgotada, com uma tristeza enorme dentro de mim, estagnada, definhada. Ainda não sei, contudo, se se tratou, de facto, de um acto corajoso ou se é visto como uma espécie de “birra”: Não me faz feliz, não me sinto bem, não quero, vou embora. Não sei, honestamente, como é que as pessoas “de fora” encararam, ou continuam a encarar, tal decisão. É claro que é necessária coragem para se deixar algo “seguro” para trás e para se dar um salto sem saber que rede nos segurará lá em baixo, se é que existirá alguma rede. A incerteza e o medo são gigantescos. Mas, seja como for, e algo que este ano, penso eu, nos mostrou a todos, é que nada é garantido, nada é certo. Nem um “emprego seguro” é certo e seguro o tempo todo. No final de contas, tudo acaba por ser temporário. 

Essa foi uma das decisões mais difíceis que tive que tomar, se não mesmo a mais difícil. Ao tomá-la, senti-me tão estranha…tão leve. No entanto, é claro que essa sensação não durou muito. Muitas pessoas discordaram, achando que eu devia pensar melhor. Até eu própria me questionei. Quando o derradeiro dia chegou e nos dias que se lhe seguiram, continuei a questionar-me, castigando-me por achar que não tinha feito a escolha certa. Agora, no entanto, sei que foi a melhor decisão que poderia ter tomado. 

Olho para mim agora e vejo o quanto as minhas ideias mudaram comparativamente ao ano passado. No ano passado, por esta altura, ainda estava um pouco agarrada à questão de não ter um emprego “fixo e seguro”. Estava a começar ponderar pedir o meu antigo trabalho de volta, nem que fosse somente em tempo parcial. Dizia a mim mesma – inclusive escrevi-o num caderno, em jeito de desabafo, que ainda há pouco tempo reli – que só queria um trabalho estável, com um horário, que não me desse chatices, com um salário ao fim de cada mês. Talvez para me manter ocupada. Para “ter uma vida”. Ou para que as pessoas deixassem de falar. 

Eu não sei se as pessoas realmente “falam” ou comentam algo em relação ao facto de eu estar desempregada, de só querer desenhar, de não ter um emprego fixo, entre outras coisas que tais. O que eu sei é que se torna irritante que me perguntem o que ando a fazer – profissionalmente falando, claro –, onde estou a trabalhar, se já arranjei trabalho, e tudo o mais. A parte profissional parece ser sempre a de maior importância, mais ainda do que o nosso bem-estar e estado de saúde, e isso entristece-me e causa-me uma certa revolta interior. O que eu também sei, contudo, é que já nada disso me interessa. O que toda a gente pode falar e comentar sobre mim, ou sobre o que faço ou o que não faço, já não me interessa para nada e é um problema apenas deles. Porque, digam o que disserem e pensem o que pensarem, e mesmo que, “visto de fora”, eu “não tenha feito nada”, eu sei o que fiz, e não tenho que provar nada a ninguém, nem justificar-me. Pensei, reflecti, ponderei, questionei-me. Lutei – e continuo a lutar – contra ansiedades e contra vozes que me contrariavam, dizendo coisas terríveis e tentando dissuadir-me a ir pelo caminho “seguro” e “mais aceitável”. Fiz trabalho de bastidores, preparando-me e preparando material para iniciar futuros projectos. Sim, tudo isto pode não parecer nada. Mas, com tudo isto, acabei por tomar as minhas próprias decisões. 

Acho que é por isso que me sinto mais leve e que apresento um novo brilho, bem como um estado de espírito mais tranquilo e optimista. Durante toda a vida, penso que sempre fiz o que “seria suposto”. Ir para a universidade, tirar um curso, arranjar um emprego. Aquilo que toda a gente faz e o que toda a gente espera que se faça. Aquilo que é “socialmente aceitável”. Como se estivesse a viver para os outros, para agradar aos outros. Em vez de pensar em mim própria. Quando, na verdade, é a mim própria que eu tenho que agradar, e é por mim que tenho que fazer as coisas, seja o que for. Foram precisos anos para compreender isto e para começar a pensar por mim. Para, finalmente, decidir-me. Por mim mesma. 

Por isso, lamento informar – mentira, não lamento nada – que já não me interessa ter um emprego a tempo inteiro, que me deixará esgotada ao fim do dia e que não me deixará com tempo para mais nada; que prefiro trabalhar por minha conta e ser a minha própria chefe, mesmo que isso seja “instável” – vou correr esse risco e acredito que dará frutos –; que ache que nenhum emprego é seguro; que prefiro ser eu a definir o meu horário e as minhas férias; que prefiro trabalhar sozinha; que quero ter tempo livre para que possa conciliar com os meus trabalhos e projectos artísticos; que vou continuar a criar; que ache que trabalhar pelo dinheiro é completamente errado; que ponho o meu bem-estar acima de tudo o resto. Não condeno quem tem empregos das nove às cinco com salários fixos e garantidos ao final de cada mês, e/ou que, mesmo assim, consegue ter tempo para outras coisas e tem dinheiro para isto e aquilo, e fico feliz por quem é feliz assim. Mas, lá por eu ficar feliz por essas pessoas, isso significa que gostava de ter o mesmo tipo de vida que elas? Não, obrigada. 

Se sou eu que escrevo a minha própria história e que escolho o meu caminho, então vou para onde me sentir bem, por mim, sendo eu própria, fiel a mim mesma. Sem ter que agradar a ninguém, excepto a mim. Mesmo que mais ninguém compreenda - mesmo que, precisamente por não compreenderem e por não terem feito o mesmo, continuem a falar.