24/09/18

Mundo de escuridão

Lê-se Let me be the sun in your world of darkness. Acho que não ficou assim tão perceptível.

"Setembro Amarelo” é o nome de uma campanha brasileira de prevenção do suicídio. Comecei a ouvir falar disto no ano passado. Sigo algumas artistas plásticas brasileiras – especialmente de lettering – no Instagram, e é comum, nesta altura do ano, fazerem um ou outro trabalho relacionado com este tema. Devido a esta onda do “Setembro Amarelo”, de ver diversos trabalhos e publicações acerca de depressão e de prevenção do suicídio, também eu me senti inspirada a desenhar a frase que ilustra esta publicação e a escrever isto.

Costumo refugiar-me na música quando estou triste. Passei a fazê-lo nos meus piores dias. Não gosto de dizer que foi depressão – estupidamente ou não, não sinto que “tenha o direito” de lhe chamar assim –, uma vez que não cheguei ao ponto de tomar medicamentos e que não foi profunda ao ponto de não me conseguir levantar da cama – embora tenha tido dias de folga em que, sim, passei horas e horas deitada, sem conseguir fazer o que quer que fosse. Mas foi como se tivesse estado “no início de” ou lhe tivesse “passado à tangente”. Isto posso dizer com toda a certeza.

Como disse, refugiava-me na música. Fazia-me sentir melhor. Nos piores dias, gostava, principalmente, de ouvir Draconian, Estatic Fear, Trees Of Eternity – cujo álbum ouvi vezes e vezes sem conta – ou Amorphis. Apenas para ter aqueles ritmos sombrios e melancólicos a ressoarem-me nos ouvidos. Depois, a certa altura, voltei a ouvir Evanescence, que tinha sido, durante anos, a minha banda favorita. Hoje, após ter voltado a ouvi-los, volto a dizer que são a minha banda favorita. Isto porque, desta vez, ouvi-os mesmo. Pareciam descrever o meu estado no momento e pareciam dar voz aos meus pensamentos. Deram-me força e puxaram-me para cima, mesmo quando aquilo que diziam através da música me dava vontade de chorar, por se adequar tão bem àquilo que sentia.

A frase que desenhei é, de facto, de uma música deles, Give Unto Me. Depressiva como tudo e triste até mais não. É como se fosse dedicada a alguém a passar por uma escuridão, muito provavelmente bem mais profunda do que a minha. A Amy, a vocalista, diz na canção que quer curar e salvar essa pessoa e pede-lhe que lhe “dê” todos os seus problemas e tudo o que a preocupa e a assusta. Na verdade, alterei um pouco a frase para que pudesse desenhá-la, uma vez que a frase original é Let it be the sun, sendo que o it se refere ao verso anterior da canção. Eu substituí o it por me, de forma a que seja uma mensagem para alguém. Let me be the sun in your world of darkness. Acho que se adequa. Porque quem está perdido e desesperado numa escuridão só quer um sol que o ajude, que o guie. Que esteja lá. Alguém com quem contar.

Acho bonitos os relatos daqueles que lutaram contra uma depressão por terem tido o apoio de pessoas; por terem tido pessoas com quem contar. Não, desta vez não estou a ser irónica. Acho mesmo bonito. Acho bonito existirem sóis na vida das pessoas, especialmente na vida de pessoas que vivem na escuridão. E acho principalmente bonito porque tudo o que eu quis, nos meus dias mais sombrios, foi um sol. E não o tive.


Eu não conseguia expressar-me. Sempre tive dificuldade em fazê-lo, e, nessa altura, em que nem sequer percebia como me sentia ou o porquê de me sentir assim, foi ainda pior. Não fui capaz de dizer às pessoas, próximas ou nem tanto, que detestava o meu trabalho, que estava arrependida de ter tirado o meu curso, que tinha o coração partido em pedacinhos, que achava que não tinha valor algum, que não me sentia bem na minha própria casa. Entre tantas outras coisas. Tinha medo e vergonha de dizer estas coisas; achava que estaria a cair no ridículo se as dissesse ou se pedisse a alguém que me ouvisse. Sim, porque o estranho e o pior disto tudo era que não queria falar, mas, ao mesmo tempo, queria. Porque queria que soubessem o que eu estava a sentir por dentro, que estava a travar uma batalha lenta e dolorosa com a minha própria mente, e eu estava em clara desvantagem. Em vez disso, era mais fácil pôr uma máscara diária e dizer que estava tudo bem. E, contudo, por não conseguir dizer as coisas em voz alta, expressava-me através da arte, escrevendo longos textos no meu antigo blog ou desenhando bonecas tristes com frases depressivas a acompanhá-las.

Algumas pessoas repararam nestes sinais, notando que as coisas não estavam bem. Essas pessoas falaram comigo e pediram-me que falasse com elas sobre isso, mas era sempre complicado para mim. Às vezes, confesso, em vez de me pedirem que desabafasse, preferia que me arrastassem de casa, que puxassem por mim e que me distraíssem, recordando-me do quanto a vida podia ser bonita. Ou que apenas me abraçassem e dissessem que ia ficar tudo bem. Mas essas pessoas vivem longe. Não foram, por isso, sóis, mas antes estrelas distantes.

Agora talvez venha a parte em que pessoas que me conhecem pessoalmente, que convivem comigo de vez em quando e que estejam a ler isto dizem que não sabiam de nada disto e que eu devia ter dito alguma coisa. Mais uma vez, digo que não foi fácil. Não é fácil dizer-se o que se passa, principalmente quando não se compreende, e, em especial, a quem está de fora e a quem nunca passou por algo semelhante. E não é fácil reconhecer que se precisa de ajuda. Menos fácil ainda é pedir ajuda.

Estados destes não são “normais”, não são “fases” e não são desculpas que usamos para chamar a atenção. Muito menos é “moda”; enerva-me tanto – sinto mesmo um acesso de raiva a crescer dentro de mim – quando ouço dizer que Parece que é moda ter-se depressão, ou quando perguntam se a depressão será mesmo uma doença. Isto não é estar-se triste, chateado ou em baixo por causa de algo que acontece no momento. Coisas destas, que acontecem no momento e mexem connosco, depois passam e já nem nos lembramos delas – às vezes até nos rimos por termos ficado tão chateados por uma coisa que, olhando para trás, era mínima. Não é algo do momento; não é algo que surge da noite para o dia. As coisas acumulam-se. Ao ponto de não se encontrar alegria na vida, de não se ter esperança alguma, de se perder a vontade de viver, de se perguntar, com as lágrimas a escorrerem pela cara, o porquê de se estar aqui, vivo, pois cada novo dia é como se fosse um sacrifício. É o deixar de se conhecer e odiar-se a si próprio. É uma frustração para com o rumo que a vida tomou. Como se eu tivesse sido atirada para o fundo de um poço e houvesse uma mão gigantesca a manter-me lá em baixo. E, sempre que a mão estava distraída ou enfraquecida por algum motivo, eu tentava subir um bocadinho. Mas ela notava o meu movimento, a minha audácia, e voltava a esmagar-me. O pior era que ela não se limitava a esmagar-me; dizia-me coisas, obrigava-me a ouvir coisas: as piores coisas que ela podia dizer sobre mim. E isso também doía. Isso e o esmagamento provocavam um sofrimento demasiado grande.

O inimigo é a própria mente. Não é um corpo estranho que se possa combater, nem é um órgão nosso que decidiu virar-se contra nós. É a nossa mente, um conceito abstracto. Talvez seja por isso que a depressão não é levada tão a sério. Talvez seja por isso que haja tão pouca compreensão.

Não consegui falar com amigos ou familiares sobre o assunto. Houve vezes em que levei com desculpas de falta de tempo por parte de amigos. Houve vezes em que levei com frases do género Por que é que estás assim? Anima-te!, principalmente por parte de familiares – e isto, acreditem, é das piores coisas. Cheguei a procurar ajuda profissional, mas tal não se revelou suficiente. Sei, contudo, que a culpa foi maioritariamente minha, pois eu é que não consegui ser completamente honesta. Mais uma vez, tive medo e vergonha, até de falar com uma desconhecida, com uma profissional.

Não vou mentir; ainda tenho estes momentos, embora sejam bem mais raros. Para reduzir a frequência dos dias negros, para aligeirar ou escapar da força esmagadora da mão que me prendeu ao fundo de um poço e para calar as vozes da minha mente, tentei encontrar o meu próprio sol no meu mundo de escuridão. Ainda estou neste processo, contudo. Ainda tento definir melhor as raízes dos meus problemas e ainda tento trabalhar na redescoberta de mim mesma e na questão do amor-próprio. Nada disto é fácil. Muito pelo contrário.

Deixo apenas o conselho de não encararem a depressão como algo leviano, como uma “moda” ou como algo para chamar a atenção. Não descurem um amigo que precise de falar; a desculpa da falta de tempo já está demasiado gasta e, honestamente, já nem sequer é válida. O tempo arranja-se, e arranja-se para o que é realmente importante. Atentem a pequenos sinais, pois nem toda a gente é capaz de pedir ajuda e pode encontrar outras formas de dizer que não está bem. Sejam sóis uns para os outros. As coisas podem tornar-se bem mais suportáveis assim.

Para terminar – eu sei que escrevo textos muitos longos –, deixo-vos um pequeno vídeo da Organização Mundial da Saúde, bastante elucidativo no que respeita a este tema e que ilustra muito bem aquilo que eu já senti.


2 comentários:

  1. A saúde mental é tão importante quanto a física. É uma pena que nem todas as pessoas pensem assim.

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  2. Nunca estive perto de uma depressão mas em dias menos bons a música, especialmente a "barulhenta", são o meu escape para relaxar.
    E não entendo como as pessoas falam da depressão como se fosse algo inventado, não nos dias de hoje com tanta informação.

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